Sunday, June 12, 2005
Tiroteio de Lanterna
TIROTEIRO DE LANTERNA
joedrimo@uol.com.br
A luz apagou de repente. A janela, da largura do único cômodo, escancarou as tantas outras sempre ameaçadoras e subitamente tão escuras do prédio em frente, os tantos fósforos e isqueiros, sempre tão banais, mas subitamente assustadores, tateando e acendendo velas buscando pouso em pires, peitoris e candelabros, projetando as tantas sombras tortuosas dos corpos e do vaivém irrequieto das portas e objetos… O tanto vozerio abafado do temível inesperado.
Nem houve tempo para tomar fôlego. Nem de levantar da cama o corpo arquejante, sangrando em antigos pensamentos medonhos, de socos, prisões e fuzis tão presentes apesar de tão passados. Os amores espalhados vinham em saudade, roíam. Na editora, o torturante “mês que vem”; na esquina — ele lembra de então — o arbitrário camburão.
Ofegante, o coração.
Um clarão?
Sim, na parede, de repente, bem redondo, com um facho que desprendia os grãos de poeira no ar. E outro, mais outro. Vários, largando estilhaços de luz muito rápidos que às vezes lhe expunham os dentes separados por alcatrão.
Atenção!
Agachado, ele vai até à estreita réstia de parede ao lado da janela. Pára, respira fundo, levanta-se devagar, bem rente. Arrisca espiar lá fora.
Um novo facho quase o atinge.
— É uma lanterna — ele conclui.
A conclusão não o alivia, porque, afinal, é uma invasão. Como se já não bastasse… o passado, o enfeitado presente. Ele quer ficar só.
Recua, agora bem encostado à parede longitudinal do cômodo, do seu cômodo que tanto custara a encontrar a gosto e a preço, abre devagarinho, e sem ruído, a gaveta da cômoda, da sua cômoda de tantas mudanças, e, torcendo o braço para não entrar no enquadramento da janela, pega também uma lanterna… a sua lanterna.
Pequenos objetos de proteção aos quais ele, enciumado, se dava o direito.
De novo se arrastando na parede ele volta à janela, e certeiro, trincando os dentes, cerrando os olhos, enfia a mão para fora, aponta a lanterna e…
A luz voltou, ele a sentiu no calor súbito que lhe tocou os ombros, a nuca. Que lhe chamuscou o canto dos olhos, que abriram aos poucos.
E viram, na janela do outro lado da rua, agora acesa com toda a sanha de luz que segue uma escuridão, um menino muito sério, alheio aos ralhos que ecoavam de um canto indistinto da sala, encarando-o… com uma lanterna na mão.
— Peguei! Eu peguei o senhor! O senhor aí! Tem que voltar!
As vozes infantis estrepitaram em correria, resvalando umas nas outras… Em coro:
— Tem que voltar! Tem que voltar!
E cochichavam, riam graves e agudos, apinhavam sobre ele, puxavam-lhe a roupa, zombavam.
— Tem que voltar!
E lá no fundo, comandando, um menino sério, muito sério, comandou determinado:
— Tem que voltar sim!
E insistia tanto que de repente, aborrecido com a demora da obediência, veio até ele em pessoa, quase num salto só.
— Tem que voltar! — O menino empurrava-o para trás.
O coro insistia: — Lá para trás, para trás daquela linha!
Uma linha? Paralisado, ele precisou forçar a vista, concentrar-se nos lábios de todos, para ouvir. A sanidade, a liberdade, não pode ser um vôo cego, arriscado, perceptível apenas a cada parada do tempo.
Quando olhou em volta, estava no pátio de um colégio.
— Atrás da linha! — o coro insistiu.
Claro, havia ali, mais atrás, no chão de cimento, uma linha. Ele enfim a viu… imaginária, e recuou devagar até lá. A caminho, ainda olhou para os meninos. Ia pedir clemência, mas mudou de idéia porque o dedo do menino, já de volta ao posto de arauto, apontava para a linha, decidido, com uma voz que instava tenência.
Porque o menino, lá na frente, no seu posto de arauto, sem mais esperar porque a hora do recreio podia acabar, virou-se de costas, apoiou o braço no muro, apoiou a testa no braço, fechou os olhos e cantou bem espaçado para dar a todos tempo suficiente para avançar:
— Batatinha frita, um-dois-três!
joedrimo@uol.com.br
A luz apagou de repente. A janela, da largura do único cômodo, escancarou as tantas outras sempre ameaçadoras e subitamente tão escuras do prédio em frente, os tantos fósforos e isqueiros, sempre tão banais, mas subitamente assustadores, tateando e acendendo velas buscando pouso em pires, peitoris e candelabros, projetando as tantas sombras tortuosas dos corpos e do vaivém irrequieto das portas e objetos… O tanto vozerio abafado do temível inesperado.
Nem houve tempo para tomar fôlego. Nem de levantar da cama o corpo arquejante, sangrando em antigos pensamentos medonhos, de socos, prisões e fuzis tão presentes apesar de tão passados. Os amores espalhados vinham em saudade, roíam. Na editora, o torturante “mês que vem”; na esquina — ele lembra de então — o arbitrário camburão.
Ofegante, o coração.
Um clarão?
Sim, na parede, de repente, bem redondo, com um facho que desprendia os grãos de poeira no ar. E outro, mais outro. Vários, largando estilhaços de luz muito rápidos que às vezes lhe expunham os dentes separados por alcatrão.
Atenção!
Agachado, ele vai até à estreita réstia de parede ao lado da janela. Pára, respira fundo, levanta-se devagar, bem rente. Arrisca espiar lá fora.
Um novo facho quase o atinge.
— É uma lanterna — ele conclui.
A conclusão não o alivia, porque, afinal, é uma invasão. Como se já não bastasse… o passado, o enfeitado presente. Ele quer ficar só.
Recua, agora bem encostado à parede longitudinal do cômodo, do seu cômodo que tanto custara a encontrar a gosto e a preço, abre devagarinho, e sem ruído, a gaveta da cômoda, da sua cômoda de tantas mudanças, e, torcendo o braço para não entrar no enquadramento da janela, pega também uma lanterna… a sua lanterna.
Pequenos objetos de proteção aos quais ele, enciumado, se dava o direito.
De novo se arrastando na parede ele volta à janela, e certeiro, trincando os dentes, cerrando os olhos, enfia a mão para fora, aponta a lanterna e…
A luz voltou, ele a sentiu no calor súbito que lhe tocou os ombros, a nuca. Que lhe chamuscou o canto dos olhos, que abriram aos poucos.
E viram, na janela do outro lado da rua, agora acesa com toda a sanha de luz que segue uma escuridão, um menino muito sério, alheio aos ralhos que ecoavam de um canto indistinto da sala, encarando-o… com uma lanterna na mão.
— Peguei! Eu peguei o senhor! O senhor aí! Tem que voltar!
As vozes infantis estrepitaram em correria, resvalando umas nas outras… Em coro:
— Tem que voltar! Tem que voltar!
E cochichavam, riam graves e agudos, apinhavam sobre ele, puxavam-lhe a roupa, zombavam.
— Tem que voltar!
E lá no fundo, comandando, um menino sério, muito sério, comandou determinado:
— Tem que voltar sim!
E insistia tanto que de repente, aborrecido com a demora da obediência, veio até ele em pessoa, quase num salto só.
— Tem que voltar! — O menino empurrava-o para trás.
O coro insistia: — Lá para trás, para trás daquela linha!
Uma linha? Paralisado, ele precisou forçar a vista, concentrar-se nos lábios de todos, para ouvir. A sanidade, a liberdade, não pode ser um vôo cego, arriscado, perceptível apenas a cada parada do tempo.
Quando olhou em volta, estava no pátio de um colégio.
— Atrás da linha! — o coro insistiu.
Claro, havia ali, mais atrás, no chão de cimento, uma linha. Ele enfim a viu… imaginária, e recuou devagar até lá. A caminho, ainda olhou para os meninos. Ia pedir clemência, mas mudou de idéia porque o dedo do menino, já de volta ao posto de arauto, apontava para a linha, decidido, com uma voz que instava tenência.
Porque o menino, lá na frente, no seu posto de arauto, sem mais esperar porque a hora do recreio podia acabar, virou-se de costas, apoiou o braço no muro, apoiou a testa no braço, fechou os olhos e cantou bem espaçado para dar a todos tempo suficiente para avançar:
— Batatinha frita, um-dois-três!
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